LUCIANO CAMARGOS

Pimenta nos olhos do outro arde e muito

Luciano Camargos
Luciano Camargos
Publicado em 23/04/2025 às 07:48Atualizado em 23/04/2025 às 07:48
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O caso Miranda v. Arizona (1966), decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos, é um marco jurídico que, à primeira vista, pode parecer desconcertante. Ernesto Miranda, acusado de sequestro e estupro de uma jovem, confessou seus crimes durante um interrogatório policial. Contudo, sua condenação foi anulada por um motivo aparentemente trivial: os policiais não o informaram de seu direito de permanecer em silêncio e de consultar um advogado. Para muitos, essa decisão soa absurda diante da gravidade dos crimes. Como uma falha processual, como a ausência de um simples aviso, pode invalidar a condenação de um criminoso confesso?

No entanto, a decisão em Miranda não se trata de proteger criminosos, mas de resguardar um princípio fundamental da democracia: a garantia constitucional contra a autoincriminação, prevista na Quinta Emenda da Constituição dos EUA. A Corte reconheceu que o ambiente de interrogatório policial, muitas vezes coercitivo e isolado, pode pressionar indivíduos a confessar, mesmo contra sua vontade ou sem plena consciência de seus direitos. Assim, estabeleceram-se as “advertências de Miranda”, exigindo que os suspeitos sejam informados de seu direito ao silêncio e à assistência de um advogado antes de qualquer interrogatório. Essa medida visa assegurar que qualquer confissão seja fruto de uma escolha livre e informada, não de coerção.

Essa lógica, embora possa parecer desproporcional em casos de crimes hediondos, é essencial para evitar abusos de poder. Quando garantias constitucionais são negligenciadas, mesmo em casos extremos, abre-se espaço para o arbítrio. A história demonstra que, sem freios claros, autoridades podem extrapolar seus poderes, comprometendo a justiça e a dignidade humana. É nesse ponto que o caso Miranda dialoga com um episódio recente no Brasil: a polêmica envolvendo o recolhimento de celulares de advogados e jornalistas durante uma sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) que recebia a denúncia contra Felipe Martins, ex-assessor de Jair Bolsonaro.

No Brasil, a Constituição de 1988 assegura, em seu artigo 5º, inciso LX, o princípio da publicidade dos atos processuais, salvo em casos excepcionais que justifiquem sigilo. A publicidade é um pilar da democracia, pois permite que a sociedade acompanhe, fiscalize e questione as decisões judiciais. O acesso à informação sobre o que ocorre nos tribunais não é um privilégio, mas um direito do povo, que precisa saber as razões por trás das decisões judiciais para avaliar sua legitimidade. Assim, a gravação e divulgação de sessões públicas, como as do STF, encontram amparo nesse princípio.

O recolhimento de celulares de jornalistas e advogados durante a sessão do STF, portanto, levanta sérias questões. Por que impedir o registro de um ato público? Qual o fundamento para limitar o exercício de um direito constitucionalmente garantido? Não se trata aqui de defender Felipe Martins ou quaisquer condutas a ele atribuídas. A questão é maior: quando se restringe a transparência de um processo judicial, mesmo que por um ato aparentemente pequeno, compromete-se a confiança na justiça e abre-se espaço para desconfianças sobre possíveis arbitrariedades.

O paralelo com Miranda é claro. Assim como a decisão americana não buscava proteger um criminoso, mas sim uma garantia constitucional, a crítica ao recolhimento de celulares no Brasil não visa defender supostos crimes, mas resguardar o direito à publicidade e à fiscalização popular. Ambos os casos alertam para o mesmo perigo: quando se flexibilizam direitos fundamentais, mesmo em nome de causas aparentemente justas, cria-se um precedente perigoso. Hoje, a restrição pode atingir um acusado de crimes graves ou um jornalista em uma sessão do STF; amanhã, pode alcançar qualquer cidadão.

Nas redes sociais, muitas vozes celebraram o recolhimento de celulares e o recebimento da denúncia contra Martins, talvez sem perceber as implicações mais amplas. Como diz o ditado, “pimenta nos olhos dos outros é refresco”. É fácil aplaudir medidas restritivas quando elas atingem adversários, mas o precedente criado pode, no futuro, voltar-se contra qualquer um. A justiça, para ser legítima, deve ser imparcial e transparente, independentemente de quem esteja no banco dos réus.

O caso Miranda nos ensina que proteger garantias constitucionais, mesmo em situações difíceis, é o preço da democracia. No Brasil, o recolhimento de celulares no STF serve como um alerta: atos que parecem pequenos podem ter consequências imensas. A vigilância cidadã e a defesa intransigente dos princípios democráticos são a única forma de garantir que a justiça não se torne um instrumento de arbítrio.

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