Michel Foucault, em sua obra “A escrita de si”, aponta-nos que “é preciso dizer a verdade sobre si mesmo”, ensinando-nos que a escrita é como uma estética da existência, um poder “subjetivador”.
Debruçada sobre os contos apresentados no recente concurso literário da ALTM, senti-me embevecida, num estado de maravilhamento e plena reverência pelos autores premiados. Passei a imaginar os passos de cada um, ao gestar suas narrativas, na tentativa de vê-las apreciadas não apenas por uma banca avaliadora, mas também alcançando um público mais amplo de leitores. Sem dúvida alguma, faz parte da essência humana o desejo de valorização, de aceitação por parte do outro, o desejo de ser amado. E nada mais plausível e evidente do que nos servirmos da literatura, da arte, para a concretização desse desejo, no entrelaçar entre a arte e a vida, uma nutrindo a outra.
Os diferentes contos analisados são um retrato fiel dessa “estética da existência”, desse poder “subjetivador” da escrita, apontado por Foucault. Nestas narrativas, percebe-se a busca de significados, por parte de cada autor, ora em forma de devaneios ou de uma consciência poética, ora revelando a vida em sua concretude, ao mesmo tempo sofrível e carregada de prazeres. Observam-se diversificados símbolos psicológicos, uma correspondência ontológica com a alma dos autores que — encantados pelo seu fazer literário — revelam sua ambivalência, o drama essencial entre o “si mesmo” e o mundo inconsciente, uma espécie de utopia, em busca de sua natureza plena e integral. Sem dúvida, há, nesses relatos, um sentido de universalidade, uma emanação de plurissignificados, contextualizando esse poder subjetivador, essa estética existencial a que se referiu Foucault. Os autores selecionados, em seus diversificados temas, parecem testemunhar essa estética da existência, ao se servirem de suas memórias e experiências de vida.
Assim, por nossa humanidade e irmanação, convido você, leitor, a acompanhar a trajetória desses talentosos autores, contagiando-se, tanto quanto eu, com suas emoções ou conflitos. Seja pela expressão de uma dor, de uma ausência ou abandono, seja por relatos da miséria e da fome, seja pela manifestação de prazeres, como a realização de um amor, o reencontro com as tradições do passado ou narrativas de simples memórias, essa subjetivação e estética existencial estão presentes, como nestes relatos:
Ora de incompreensão e violência: “E Delmir sabia que, no caso da caça, o arrependimento vinha após o estouro. No caso dele, o arrependimento veio antes...se arrependeu de ter deixado o bicho ruim vivo. Bicho ruim não se amansa. Escutou o estouro... Sentiu o fogo...em seu peito. Caiu no chão...pôs a mão no furo onde a bala entrou... Até que o arrependimento também passou”.
Ora de penúria e fome: “Por ironia do destino, a primeira palavra que li sozinho foi: “FOME”. Escrita...com letras maiúsculas em um pedaço de papelão sujo, erguido pelas mãos...de um pedinte maltrapilho, que, ...aos pés de uma das escadarias da estação Luz, sequer tinha forças para contar sua própria história.”
Ora de mudança de vida: “O domingo já estava acabando e Joviano...observava...os últimos raios de sol sobre a cidade...estava quase chegando à rodoviária de Belo Horizonte...nunca tinha visto...tantos prédios e tão altos. Aquilo, pra ele, era o máximo!...apenas para se ver... Preferia ter os pés fincados no chão, como na sua choupana lá na roça.”
Ora de conflitos e medos: “Minha última memória foi o momento seguinte, quando todos se distanciaram de mim... Eu jamais esquecerei aquele dia!...em que me senti em um experimento nazista... Onde estava meu marido?... Incomodava-me pensar que ele estivesse por trás disso...”
Ora de simples memórias: “No entanto, enquanto parafraseio, coloco-me à disposição das poucas memórias que ainda me restam. Ah, as memórias, como são valiosas! Me agarro...em cada uma que passeia por dentro de minha cabeça e as anoto para reler a cada dia.”
Ora de revelações de Amor: “No silêncio construído por todos os sons que participavam do desfile, sentiu sua própria saliva a ser produzida em dobro, quando, afogando as gengivas, Crislaine proferiu o ‘N’ — de “Niel”.
— Por que nunca me contou? Que me amava?”
Ora de reflexões sobre a vida, o tempo, o medo, a morte: “O tempo, o que é, se não o vemos? Ainda ontem, sinto, brincávamos. Onde nos escondemos, os meninos que éramos? Será que, em alguma parte, ainda os somos?... E, súbito, essa outra coisa que a gente se torna depois de não mais ser”.
“A morte...sempre pronta em todas as horas e à espreita de qualquer descuido de nossa parte... nunca dorme...e nos observa... Por três vezes a senti...com sua voz...a sussurrar: ‘estou aqui!’”
Ora de manifestação de nossas tradições, que nos mantêm fiéis ao passado e nos fortalecem para vivenciarmos a concretude do nosso presente: “Na parte de cima, a moradia dos donos; a de baixo, antiga senzala, abrigava os empregados solteiros, agregados e a tropa de burros. O grande terreiro à frente,... separava as pastagens e o cafezal da mangueira, dos porcos e do paiol; ao lado deste, dois imponentes pés de “uva japão”, fruta doce e rara.”
“Minha avó, uberabense orgulhosa, repetia centenas de vezes sobre a importância do primeiro hotel da região... Havia uma história comprida, contada...em família, de um tio-avô que havia ido ao continente asiático conhecer o gado Zebu e trazer para Uberaba... Para mim, eram apenas histórias.”
Ora de exposição de nossas tragédias, que nos desestabilizam, deixando rastros de profundas mágoas e inesquecíveis traumas: “Oh, terra infecunda! Vozes e gritos ainda permeiam minhas entranhas desde o estrondo da barragem de Fundão, com a lama descendo, desarruando ruas, desconstruindo casas, desnascendo árvores, desabastecendo bares, desfazendo lares, excomungando igrejas, afogando santos, desmugindo bovídeos, afogando pocilgas, arrasando minha tão querida gente, varrendo minha cultura, rasgando minha história...”.
Ora de compartilhamento da cultura, metafraseando antigas produções literárias: “Sabia que precisaria contar a história da cientista, do encontro das almas, do rio da vida! Sabia que aquelas botinas de jagunço precisariam vagar sertão afora!...não sabia como faria isso! O que sabia...era que precisava de um nome!...capaz de captar a fúria do rio em que estivera com Madame Curie... — Dia-do-rim? Dia-do-rim! Diadorim!! Obrigado,...amigo, você acaba de me resolver um enorme problema!”.
“— Por favor, trate-me de Capitu. Tem pessoas que até desconhecem que meu nome é Capitolina.
— Meu ex-marido chamava-se Bento,...conhecido por Bentinho. O nome de nosso filho foi uma homenagem a Ezequiel Escobar,...antes de morrer, não estava às boas com Bentinho.”
E, por fim, narrativas a promover encantamento, ante construções como estas: “Vi as mãos de minha vó tremerem ao pegar o molho de chaves e abrir o passado”.
“O sol se despede...o céu azul-escuro é abraçado pelo negro definitivo da noite e... estrelas principiam a brilhar. Ao longe...adivinha-se o mar; luzes se acendem no cais...”
“‘Escreve a dor, Maria Clara, transforma a dor em palavras... Esse é o jeito mais bonito de remendar um sonho...’ E, dessa vez, a dor não quis virar uma conversa no meu Diário; ela se transformou em poesia.”
Enfim, evidencia-se, no apagar dessa breve análise, a importância do APLAUSO a estes talentosos autores, que tão bem representaram os novos escritores do país, nesse evento assaz representativo de nossa cultura, o “VI Concurso de Contos Cerrado das Gerais – Terra de Gigantes”, brilhantemente produzido pela ALTM –Academia de Letras do Triângulo Mineiro. Um presente e uma homenagem para a nossa querida Uberaba, que tanto nos orgulha!
Hedy Lamar Barbosa de Oliveira
Licenciada em Letras Neolatinas; ex-professora de Redação e Gramática; revisora de textos; tradutora de francês e autora do livro “Meu Caminho para Medjugorje – Uma jornada em nome da fé”
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