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Raio-X da judicialização da saúde suplementar em Uberaba

Gustavo Vitorino
Publicado em 03/06/2025 às 18:50
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Prevista na Constituição de 1988 como direito de todos e dever do Estado, a assistência à saúde no Brasil tomou forma num modelo dual: de um lado, o Sistema Único de Saúde (SUS), gratuito e universal, porém cronicamente subfinanciado e sobrecarregado; de outro, a saúde suplementar, composta por planos e seguros privados que hoje protegem cerca de cinquenta milhões de pessoas – quase um quarto da população –, funcionando como válvula de escape para as longas filas, a carência de leitos e as limitações tecnológicas do SUS. Esse segundo pilar é regulado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), incumbida principalmente de fixar coberturas mínimas e fiscalizar o relacionamento entre operadoras e consumidores.

A saúde suplementar não para de crescer: cooperativas médicas, seguradoras e administradoras de benefícios faturaram, em 2024, mais de trezentos bilhões de reais. Com a expansão, veio o conflito. Pesquisas acadêmicas apontam aumento anual de dois dígitos nas ações judiciais contra operadoras na última década, movimento confirmado pelo Conselho Nacional de Justiça, que detectou alta de 130% na judicialização da saúde em dez anos. Em metrópoles como São Paulo, esses processos já beiram vinte mil por ano.

Um dos combustíveis dessa explosão é a controvérsia sobre o Rol de Procedimentos da ANS. Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça qualificou o rol como “taxativo”, admitindo cobertura de itens fora da lista apenas em hipóteses excepcionais. A reação popular foi imediata: o Congresso editou lei que devolveu caráter exemplificativo ao rol e impôs critérios objetivos para a inclusão de tratamentos, pretensamente dispensando o beneficiário de ir a juízo. A impressão, contudo, é de que muitas operadoras seguem tratando o rol como barreira rígida, empurrando o usuário para o Judiciário.

Outro fenômeno relevante é a migração maciça para planos coletivos – por adesão ou empresariais – em detrimento dos individuais. Enquanto o índice de reajuste dos planos individuais ou familiares é limitado pela ANS, os coletivos têm aumentos livremente negociados entre operadora e contratante, sem teto oficial. Resultado: valores mais altos e imprevisíveis, abrindo novo flanco de litigiosidade.

Foi nesse cenário que nossa equipe chegou a Uberaba disposta a compreender as disputas locais. Analisamos quase mil processos ajuizados entre 2022 e 2024; restaram 501 ações centradas em cobertura assistencial – exames, cirurgias, medicamentos, terapias – ou em reajustes de mensalidade. A fotografia impressiona: 119 ações em 2022, 150 em 2023 e 232 em 2024, salto que contrasta com uma carteira estável em torno de 160 mil beneficiários. O índice resultante – 3,1 processos para cada mil vidas – supera o observado em cidades vizinhas, como Uberlândia.

O pano de fundo financeiro ajuda a explicar a litigância crescente. A operadora que detém quase dois terços da carteira local encerrou 2024 com receita de R$456,2 milhões e despesa assistencial de R$359,6 milhões, obtendo sobra líquida de cerca de R$23 milhões. Ainda assim, figura apenas na septuagésima posição de um ranking nacional que avalia satisfação dos usuários entre 91 operadoras de grande porte. Solvência há; disponibilidade assistencial, nem sempre.

Reunindo a base constitucional, o histórico nacional de litígios e o retrato estatístico de Uberaba, nossa pesquisa sugere uma conclusão, ainda provisória: enquanto houver distância entre o tratamento prescrito e a cobertura efetivamente autorizada, o Fórum continuará sendo extensão do consultório. Nos próximos artigos, mergulharemos em recortes específicos, a exemplo do perfil dos autores e das decisões judiciais, para mostrar, com números, como a saúde suplementar local se decide nas páginas do processo.

 Gustavo Vitorino

Advogado especialista em Direito Médico e da Saúde

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