A poeta Wislawa Szymborska nos lembra que o livro dos eventos está sempre aberto no meio. E talvez não haja metáfora mais honesta para o que vivemos: não há prefácio que nos prepare nem epílogo que nos salve. A vida começa onde já está em andamento e todo recomeço carrega ruídos do que ficou para trás, inclusive o que não foi escrito.
Seguimos escrevendo no intervalo das vírgulas, entre frases que não chegaram a se concluir. Os dias não respeitam capítulos bem definidos, tampouco obedecem à ordem cronológica das intenções. Muda-se de cidade, de afeto, de rumo, mas nada disso apaga o sublinhado emocional das entrelinhas. As coisas que não controlamos, essas especialmente, permanecem como anotações à margem. Persistem mesmo quando não queremos mais relê-las.
E talvez por isso seja tão difícil saber onde uma dor termina e outra começa. Onde cessa um medo e se insinua um desejo. A linha que separa não é linha: é esboço. E o tempo, esse conspirador enviesado, não cura, apenas passa. Mas há uma dignidade possível no continuar. Aquela do gesto mínimo de quem, mesmo sem entender, ainda assim se levanta, organiza um pouco do canto da vida interna e decide cuidar do que pode ser cuidado.
Talvez o que nos salve não seja a promessa de um novo começo, mas a coragem de continuar com alguma delicadeza. Não somos prólogo nem final. Somos dobra. Página remendada. Corpo que respira no entre. Escrita interrompida pela vida, e ainda assim escrita. O que fazemos, o que sentimos, o que não conseguimos nomear: tudo isso insiste em permanecer, esperando o instante em que consigamos, ao menos por um parágrafo, compreender.
O livro está aberto no meio. E a vida, mesmo desconcertante, segue exigindo que escrevamos mais um pouco, ainda que sem título, ainda que sem saber em qual parte começa ou termina.
