Não é exatamente a hora da partida que mais pesa, mas o instante anterior — o exato ponto em que tudo se insinua e nada ainda se move. Como se o mundo, por breves segundos, segurasse a respiração. “A hora da partida soa quando / Escurece o jardim e o vento passa”. O jardim escurece não porque o sol se pôs, mas porque algo do visível perdeu a nitidez. O vento passa, mas não refresca. Estala o chão, como se o silêncio tivesse rachado por dentro.
Sophia de Mello Breyner Andresen escreve a partir dessa fissura. Seus versos não dizem “adeus” — eles escutam o rumor subterrâneo do momento em que o vínculo se solta. Não há um grito, uma ruptura escancarada. Há o som das portas que batem sozinhas, “quando a noite cada nó em si deslaça”. E é nesse desatar que algo, paradoxalmente, se revela.
A partida, aqui, não é geográfica. É uma perda de si. Um desencontro entre o rosto e a face refletida. “Soa quando no fundo dos espelhos / Me é estranha e longínqua a minha face”. Uma cisão que não sangra, mas distancia. Quem é essa que me olha do espelho, com minha pele e minha boca, mas um outro tempo por dentro? O que me escapa quando já não me reconheço nos gestos que repito?
A literatura contemporânea, quando mais lúcida, também parte desse estranhamento. Ela escreve no limite entre o íntimo e o irrecuperável, entre o corpo que insiste e a biografia que falha. Não busca representar, mas tensionar. Parte do mesmo gesto que o poema enuncia: “E de mim se desprende a minha vida”. Como se viver fosse também desapegar-se, permitir que algo escape sem promessa de retorno.
Talvez por isso a hora da partida soe como música dissonante. Uma melodia que escapa das fórmulas e dos acordes fáceis. Porque viver é também se afastar de si, e há nisso uma beleza que não cabe nas frases prontas. Não se parte apenas de uma casa ou de um corpo: parte-se da versão de si que, durante um tempo, nos pareceu suficiente.
E quando tudo ao redor ainda parece germinar — “as árvores parecem inspiradas / Como se tudo nelas germinasse” — é aí que a ausência se torna mais aguda. Porque a vida continua, mas algo de nós já não está mais. É nesse intervalo que escrevemos. Não como quem quer registrar, mas como quem tenta não desaparecer.