ARTICULISTAS

Um reino muito esquisito

Renato Muniz
Publicado em 15/04/2024 às 20:35
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Vocês vão me perdoar, posso estar enganado — afinal meu mundinho é restrito ao país onde moro —, mas isso aqui me parece o maior reinado de que se tem notícia em toda a história. Mesmo que o imperador e sua célebre família tenham ido embora, com o consequente fim do Império no século XIX, tenho a nítida impressão de que o reinado sobrevive. Com características totalmente diversas, é claro. Vou explicar.

Não me refiro a certas práticas arcaicas que persistem, nem à presença de alguns monarquistas — que volta e meia insistem em voltar do passado. Muito menos me refiro à política, com suas inevitáveis idas e vindas, avanços e retrocessos. Basta observar o nosso entorno. O que vocês enxergam?

Eu vejo o “Rei do Cachorro-Quente”, um botequinho muito mequetrefe, mas que ostenta uma orgulhosa placa anunciando seu domínio. Vejo a simpática lojinha intitulada “A Rainha das Porcelanas”. Vejo e ouço passar nas ruas o “Rei da Pamonha”. Compro ferramentas no “Rei dos Parafusos”; bebo um cafezinho no “Rei do Café Coado”. Assisto na TV aos jogos do rei do futebol, da rainha das quadras, às estripulias da rainha das piruetas e admiro a coragem empreendedora da “Rainha da Pipoca”.

Seja nas metrópoles, nas cidades médias ou nos menores distritos do interior, lá estão o rei ou a rainha de qualquer coisa. Quem lhes outorgou o distinto título, não faço a menor ideia, mas imagino o esforço diário que fazem para manter seu reinado em pé. Contra que falastrões ousados lutam para evitar constantes golpes de Estado? Como fazem para arcar com as despesas do reino? Com que Exército contam para se defender de pistoleiros, piratas e usurpadores?

A coisa está tão entranhada na vida nacional, que não nos damos conta da sua extensão e relevância cultural. Conheci um sujeito que dizia ir para seu “feudo” nos fins de semana — um rancho na beira do rio —, onde se sentia um nobre, um barão. Na segunda-feira, voltava a ser o resignado gerente de uma loja de roupas. Fico mais aliviado ao saber que esses reis, rainhas e pequenos senhores feudais não costumam ameaçar seus súditos, mas confesso que tenho medo dos aloprados tiranos que surgem vez ou outra para nos recordar de que os tempos coloniais podem voltar. Esses me amedrontam. Se alguma violência houver, se voltará contra os minúsculos reinados em cada esquina, contra os fregueses, a clientela.

Há ainda os “reis” do reino animal, o “rei das selvas”, a “rainha dos mares”, príncipes e princesas mil. O que explica essa necessidade de exalar superioridade? Será uma tentativa de superação do “complexo de vira-lata”, tão bem explorado pelo escritor Nelson Rodrigues? Ele se referia à sensação de inferioridade causada pela derrota da nossa Seleção para a do Uruguai, em 1950. E hoje? O que nos seduz no reino dos pequenos reinados?

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