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Banho frio

Renato Muniz B. Carvalho
Publicado em 29/04/2024 às 19:07
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A hora do banho na fazenda do meu avô era um misto de alegria e tortura. É que na casa não havia energia elétrica. E aí? Água fria no verão e água quente do fogão a lenha no inverno. Dormir sujo não podia. Minha avó não ficaria satisfeita se soubesse que os netos se deitaram sujos nos seus lençóis tão limpinhos.

Minha mãe costumava dar banho em dupla, para economizar lamúrias, água e paciência. Provação inglória. Ela colocava dois meninos na imensa bacia de alumínio, despejava água, mais quente ou mais fria, dependendo da estação, ensaboava e despejava água novamente. Mais uma dupla, ufa! Depois, cada um pulava nos respectivos chinelos e se enrolava na toalha à espera da roupa limpa. Após o banho, vinha o jantar, um tantinho de prosa com os adultos e cama.

Pior era no frio. A água nunca vinha na temperatura adequada, ora estava muito quente, ora muito fria. Às vezes, no inverno, esfriava no trajeto entre a cozinha e o banheiro. Era um choro só, reclamações, recusa ao banho, revolta com a absurda obrigação de tomar banho todos os dias. O fato é que chegávamos ao fim do dia imundos, verdadeiros tatuzinhos, como meu pai nos apelidava. Parece que passávamos o dia cavucando buracos na terra. Andávamos por todos os lugares em busca de frutas da época, de árvores para subir, de varinhas, de pedras bonitas, atrás de infindáveis descobertas, lugares e paisagens. Passeávamos pelo curral, pelo galinheiro, no córrego do fundo do quintal, nas minas d’água. Volta e meia, estávamos cheios de bicho-de-pé, carrapatos, picadas de borrachudos e marimbondos. E nos sentíamos renovados após o banho e as esfregadas, muitas vezes enérgicas, mas executadas com capricho e carinho por minha mãe.

Parecia-nos que o mundo seria sempre daquele jeito, mas sabíamos que um dia a eletricidade chegaria, entre outras mudanças. Só não sabíamos quando nem que as transformações seriam tão significativas. Desejávamos a eletricidade, não apenas por causa dos banhos. Com a energia elétrica viriam as lâmpadas e o fim das noites escuras, teríamos a possibilidade de trazer uma vitrola e nossos discos preferidos, o ferro elétrico, o liquidificador e outras modernidades, que abrandariam a peleja da minha mãe.

Não me recordo de quando surgiram os primeiros postes no horizonte. Deve ter sido no final dos anos 1960. Lembro-me do meu pai parando para conversar com a turma que avançava pelos campos fincando os postes de madeira, depois passando os fios, com as inevitáveis alterações na paisagem. Tudo isso trouxe grandes expectativas, esperança e hesitações. O que o novo mundo nos reservaria?

A chegada da eletricidade coincidiu com a idade de tomarmos banho sozinhos. Não dependíamos mais da minha mãe e de suas canecas d’água. Nosso mundo mudou e continua a mudar. Hoje, a sensação que tenho é a de que nunca mais vai parar de mudar.

 Renato Muniz B. Carvalho

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